BRASÍLIA - Apontado pela Polícia Federal como mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco, o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-R
BRASÍLIA – Apontado pela Polícia Federal como mandante do assassinato da vereadora Marielle Franco, o deputado federal Chiquinho Brazão (sem partido-RJ) destinou R$ 11,6 milhões em emendas parlamentares a organizações não-governamentais sob suspeita de fraudes em licitações. Maior parte desse dinheiro, cerca de R$ 6,3 milhões, foi destinada para ações de capacitação de mulheres que visam combater a violência doméstica.
Esses recursos foram repassados pelo governo federal entre 2019 e 2023 para quatro ONGs com sede no Rio de Janeiro. Oficialmente, os projetos buscam capacitar moradoras de cidades fluminenses como cabelereiras, designers de sobrancelha, cozinheiras, pedreiras, eletricistas e cuidadoras de idosos. A Controladoria Geral da União (CGU) produziu relatório apontando que duas das quatro ONGs estão envolvidas em processo fraudulento para executar serviços custeados com dinheiro público federal.
Procurado por meio de sua assessoria, Chiquinho Brazão não se manifestou. O deputado está preso após ser acusado de mandar mantar Marielle. O assassinato tem sido visto como “feminicídio político”. O dirigente da principal ONG nega qualquer irregularidade.
Ao longo das últimas duas semanas, o Estadão analisou contratos, licitações e documentos vinculados às emendas de Brazão. Os registros revelam ligação entre as ONGs favorecidas pelo deputado e ainda indicam uso de documentos forjados para simular uma concorrência entre as empresas.
O modelo de transferência de recursos patrocinado por Brazão começa com a apresentação de emendas ao Orçamento. No texto da emenda, o deputado já escreve o nome da ONG que deve receber o dinheiro público. Os recursos foram repassados por intermédio dos Ministérios dos Esportes e da Mulher.
Para executar os serviços de assistência para mulheres, expressão na emenda do deputado, a ONG é obrigada a fazer uma licitação já que o dinheiro é público e deve haver garantia de que a empresa contratada executará a ação pelo menor preço. No caso das ONGs escolhidas por Brazão, os documentos das licitações têm vários indícios de irregularidade.
Ao analisar os documentos, o Estadão encontrou registros de que um mesmo concorrente fabricou propostas em nome de terceiros para simular disputa pela execução do serviço. As empresas escolhidas são geridas por amigos ou registradas em nomes de laranjas ligados aos dirigentes da ONGs.
As quatro ONGs indicadas por Brazão são: Instituto Nacional de Desenvolvimento Humano (Inadh), Instituto de Desenvolvimento Social e Humano (IDSH do Brasil), Instituto Cultural, Educacional e de Capacitação Profissional (Icecap) e Instituto Mais Humanos (IMH). Todas as entidades ficam no estado do Rio de Janeiro e possuem ligações entre si.
Um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU), revelado em julho do ano passado pelo Estadão, já havia identificado indícios de direcionamento e de superfaturamento em quatro convênios realizados pelo Inadh e pelo IDSH do Brasil. O órgão levantou um prejuízo de, pelo menos, R$ 2,5 milhões aos cofres públicos. A auditoria foi enviada para investigação da Polícia Federal em razão da gravidade dos crimes. O jornal apurou que as outras duas entidades – IMH e Icecap – também atuam com o mesmo modus operandi e estão ligadas às mesmas pessoas.
Fraudes têm digitais de aliado da família Brazão
As digitais das fraudes apontam para Diego dos Anjos, que se apresenta como CEO do Inadh. Trata-se de um empresário nascido no Rio de Janeiro e que atua há quase duas décadas no terceiro setor. Ele tem fotos com Chiquinho Brazão e já foi homenageado pela família na Câmara Municipal do Rio.
“No primeiro mês de mandato do Chiquinho Brazão, quando eu nem imaginava que seria vereador, procurei o Diego e falei: ‘Diego, nós vamos trabalhar com a sua ONG. O Inadh vai ser a nossa porta de entrada para o mundo social’. Eu procurei e a oportunidade veio a partir do mandato do deputado federal Chiquinho Brazão”, disse o vereador Waldir Brazão, no dia 8 de outubro de 2021, durante entrega de um conjunto de medalhas a Diego dos Anjos em solenidade na Casa Legislativa. “Isso impulsionou o nosso trabalho e ajudou na minha eleição, com certeza. Porque, quando a gente ajuda as pessoas, Diego, elas nos ajudam também”, prosseguiu Waldir em seu discurso.
O instituto dirigido por Diego já teve como superintendente e lobista o empresário Leonardo Rangel de Alencar, conhecido como Léo Brazão. Ele usa sobrenome do deputado, mas não é seu parente.
Além de CEO do Inadh, Diego dos Anjos já foi membro da diretoria do Icecap. Sua atuação como empresário do terceiro setor começou com a Casa do Amigo. A ONG está na lista de entidades proibidas de serem contratadas pelo governo federal, em razão de punições aplicadas pelos Ministérios da Cultura e da Igualdade Racial por não cumprir com os contratos.
Apesar de estar em dívida com a gestão pública, Diego dos Anjos opera hoje por trás das quatro entidades que participam do suposto esquema de fraude em licitações. O Estadão identificou indícios de que documentos produzidos em nome de 14 empresas foram falsificados pelo grupo.
Boa parte das propostas apresentadas nas licitações tem arquivos digitais cujo autor seria a mesma pessoa. Os documentos estão registrados como tendo sido criados por “Diego ONG” e “Diego dos Anjos”. É o caso de uma proposta enviada pela empresa HB Multisserviços para locação de microcomputadores, máquinas de costura, macas e cadeiras de rodas. A companhia negou à CGU ter sido a autora da proposta e assegurou que seu nome foi usado indevidamente.
Em outros casos, os documentos foram produzidos por funcionários das ONGs ou por amigos de Diego dos Anjos que ganharam as licitações.
Uma proposta comercial atribuída à empresa AP Networks no âmbito de um convênio do Ministério das Mulheres, por exemplo, tem como autor do arquivo digital ‘estefania silva’. Estefânia da Conceição dos Santos Silva está entre os associados do IDSH do Brasil. A AP Networks confirmou ao Estadão que a proposta é falsa. “De fato, ela não existiu. Nunca enviamos essa proposta”, informou a assessoria da empresa.
Uma outra proposta enviada ao Instituto Mais Humanos em nome da empresa Viva Estética também tem indícios de ter sido falsificada. Entre os produtos oferecidos estão pentes, shampoos e tesouras. “Não tem nada a ver com a minha empresa, isso daí. É uma fraude. Eu nem trabalho com a maioria desses produtos. Não participo de licitação pública. Meu negócio é E-Commerce, vendo pela loja virtual. Estou até surpreso e assustado com essa situação. Pretendo fazer um boletim de ocorrência”, afirmou o empresário Flávio de Souza, dono da Viva Estética, ao Estadão. Nesse caso, a autoria do documento é de Ellison Petrutes, que já foi testemunha de um contrato do IDSH do Brasil.
Procurado pelo jornal, Diego dos Anjos negou a prática de quaisquer irregularidades, dizendo seguir à risca o disposto na lei que trata regula as associações entre governos e ONGs, e disse que já prestou sua defesa ao relatório da Controladoria-Geral da União. O empresário admitiu que presta “consultorias informais” para o IDSH do Brasil, o Icecap e o Instituto Mais Humanos. Negou, porém, que existam documentos falsificados, apesar de as próprias empresas dizerem o contrário.
“Não sou eu que faço o processo licitatório, mas não se trata de documentos falsos. O que acontece é que a empresa às vezes cria expectativa de fornecer e, quando não ganha a licitação, o dono acaba ficando chateado e fala essas coisas”, disse. “Desconheço essa informação de ter criado os documentos. O que aconteceu foi que eu recebi, baixei na minha máquina e imprimi.”
Ganhadores das licitações são aliados de Diego dos Anjos
As empresas vencedoras das licitações têm fortes ligações com o CEO do Inadh, o que pode indicar favorecimento. Estão registradas em nomes de laranjas ou de amigos do empresário. A Agência Brado e a FEG Consultoria pertencem, por exemplo, ao contabilista Márcio César. Nas redes sociais, Diego tem fotos ao lado do parceiro. “Um amigo mais chegado que irmão”, escreveu Diego num post.
Já a TG Serviços e Consultoria é de Tiago Galante, que também faz parte do feed de amizades de Diego e é o criador do site do Icecap. Diego e Tiago já até fizeram viagem juntos.
Uma das empresas que está em nomes de laranja é a Globo Soluções Tecnológicas, que, no papel, pertence a Sara Vicente Bibiano. Ela foi beneficiária do auxílio emergencial, recebendo 16 parcelas durante a pandemia, e membro do Conselho Fiscal do Inadh até setembro de 2021. “A empresa não aparenta ter infraestrutura operacional para prestar os serviços contratados, tendo em vista que não possui funcionários e que os endereços oficiais da empresa são residenciais, em locais de difícil acesso”, relatou a CGU, ao calcular que a Globo já recebeu pelo menos R$ 11 milhões das ONGs.
Outra empresa que ganhou subcontratos no âmbito desses convênios é a Atitude Consultoria. A empresa pertence a Stephany dos Santos Lopes, uma jovem de 19 anos. Ela é filha de Estefânia Silva – funcionária do IDSH do Brasil que também consta como autora dos documentos falsificados.
Ao Estadão, Diego dos Anjos reconheceu Márcio César e Tiago Galante como amigos., mas disse que não há crime nenhum nisso. “Eu conheço toda essa rede, eu trabalho nisso há 18 anos, tenho uma capacidade técnica muito grande, sou consultado o tempo inteiro. As empresas são de amigos, mas isso não interfere no que a Lei determina. Todos os processos são feitos pelo Inadh, a gente sempre faz como base a lei 13.019/2014, no que tange em relação à economicidade e à prestação de serviços dos processos licitatórios. E essa lei não diz nada sobre privilegiar amigos”, afirmou.
O CEO do Inadh também negou que Sara Bibiano seja laranja. “Ela trabalha na empresa Globo. A Sara foi, num passado muito próximo, integrante do Inadh, mas decidiu seguir a carreira profissional dela. Todas as vezes que foi possível contratar a empresa dela, ela apresentou o preço, conforme a lei determina, apresentou a melhor proposta, e não vimos irregularidade alguma nisso”, contou.
Procurados por e-mail, Márcio César e Tiago Galante não se manifestaram. A reportagem não conseguiu contato com Sara Bibiano. Todas as quatro ONGs citadas na reportatem – Inadh, IDSH do Brasil, Icecap e IMH – também foram demandadas.
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